Porque eu gostava de escrever
Era uma dessas manhãs de segunda-feira em que, só pra variar, eu chegava atrasada na aula. Eu pensava que ia fazer aquela disciplina só por fazer, porque era obrigada, e sabia que possivelmente eu não iria seguir a profissão na qual iria me formar. Pois é, indo até o fim de um curso de quatro anos para não trabalhar naquilo.
Uns diziam que era loucura, perda de tempo. Outros me perguntavam o porque de insistir em algo que eu mesma sabia que não tinha muito futuro. A verdade é que eu não sei, nunca soube. Talvez eu não tivesse mesmo a ver com essa coisa de apuração e reportagem, mas mesmo correndo o risco de não usar nada daquilo depois, eu permanecia ali. Era como um vício do qual eu não conseguia me libertar. Quanto mais eu tentava fugir, mais perto do final e mais "presa" àquilo eu estava.
A sensação que eu tinha é que eu era a mulher traída, mas perdidamente apaixonada pelo traidor. Pensar naquilo como uma profissão me deixava um tanto perdida, da mesma forma que dói pensar que a pessoa que você ama não te respeita. E por mais que a gente sofra, não adianta. Ao menor sinal de que o amor é correspondido e que as coisas podem dar certo, a gente esquece todas as tristezas e frustrações e a esperança ressurge.
Pois que naquela manhã minha mente oscilava entre pensamentos aleatórios e palavras soltas que ouvia do professor enquanto eu divagava. De repente, um estalo.
"Às vezes me preocupa ver que muitas pessoas entram no jornalismo porque gostam de escrever e no decorrer do curso perdem o tesão pela escrita, começam a ver isso apenas como uma obrigação. Não percam o prazer de escrever..."
Imediatamente aquela frase me levou à minha primeira fase. Vi a sala cheia de calouros, com os veteranos em volta. Era a época que eu realmente escrevia porque gostava, por mais toscos que fossem os textos.
- Escolheu o jornalismo por que, caloura?
E como era de se esperar:
- Gosto de escrever e... só. - abafando o "e quero mudar o mundo" que viria em seguida.
Depois da empolgação inicial sempre vem o choque com a realidade. A expectativa em confronto com o que a tão sonhada faculdade realmente era. "Seu texto não é um pedacinho de você, não é o que você sente e sim como as coisas são" e esse medo que eu tinha de que o domínio da técnica sufocasse a criatividade.
Sempre acreditei que os textos que a gente escreve são, na verdade, do mundo e não nossos. Mas por que agora isso parecia ruim? Por que eu me sentia oprimida por não existir naquilo que eu escrevia? Nessas horas eu lembrava de um velho amigo que dizia: "você no jornalismo é um disperdício. É criativa demais pra isso, não me conformo". E embora eu acreditasse em parte no que ele dizia, eu permanecia ali, numa relação esquizofrênica entre o que eu queria ser e para que eu me preparava.
Me perdi nos devaneios e o som da voz do professor permanecia como um som de fundo. Voltei à consciencia em mais um estalo.
"Mesmo dando aula há tantos anos ainda me bate uma insegurança, um frio na barriga antes de entrar em sala. Nessas horas eu sinto que ainda estou vivo. Se sentir confiante demais e com certeza demais é ruim. Limita as possibilidades."
Então essa insegurança é boa? Esse medo de estar no lugar errado, essa impressão de ser um peixe fora do aquário... isso é bom? Concluí que sim.
Escrever é como amar. Enquanto ainda existe o frio na barriga e o medo de que aquilo possa se perder ou de você não ser bom o suficiente, a paixão permanece. Quando isso já não acontece mais e as certezas começam a se tornar absolutas é sinal de que tudo está começando a funcionar no modo automático, a paixão está se apagando e corremos o risco de cair em uma zona de conforto, no comodismo. E se acomodar já é meio caminho andado para o fim, seja ele declarado ou não.
Me sinto mais viva agora. Se antes achava que tinha desaprendido a sentir, que tinha sido moldada pela tal da objetividade, hoje eu vejo que só me faltava um pouco de inspiração e coragem. Porque escrever não é fácil. Escrever é bom, mas dói.
O mais importante é o processo de transformação, é onde a gente mais aprende. Quando surgem as dúvidas, é aí que a essência se torna mais viva. Verdade absolutas limitam nossa visão da vida. A gente precisa de muita coragem pra assumir os riscos e a possibilidade de por tudo a perder... mas eu ainda quero mudar o mundo.
"Não há verdadeira criação sem riscos e, portanto, sem uma cota de incertezas"
Gabriel García Marquez